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quinta-feira, 25 de maio de 2017

#leiturasubjetiva

“Você está assistindo a
Sense8
Temporada 2: Ep. 2
Quem sou eu?”


- Sabe qual é o seu problema? [...]. Não está tentando entender nada. [...]. Porque rótulos são o oposto da compreensão. [...]. [...] o que coragem tem a ver com a cor da pele de um homem [, ou outro atributo, por exemplo]? Eu era só um garoto que adorava filmes. E os heróis que eu via faziam eu me sentir mais corajoso do que era. Mais engraçado. Mais inteligente. Eles me faziam sentir que podia fazer coisas que não achava que poderia fazer. Mas aquele garoto que assistia TV com a mãe, avó e tias não é o homem que virou ator, não é o homem que virou motorista [ou qualquer outro profissional, esse tipo de etiqueta]. O motorista [ou quem quer que reconheça como sendo eu] não é a mesma pessoa que você vê aqui.
- E quem eu vejo aqui?
- Quem sou eu? Quer dizer... De onde eu vim? O que um dia posso me tornar? O que faço? O que fiz? O que eu sonho? Quer dizer... O que você vê? O que eu vi? O que você vê ou o que eu vi? O que temo ou o que sonho? O que temo? O que sonho? Quer dizer quem eu amo? Quem eu amo? O que perdi? Quer dizer o que perdi? Quem sou eu? Acho que eu sou... Exatamente igual a você. Nem melhor. Nem pior. Porque ninguém nunca foi e nunca será exatamente igual a você ou a mim.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

De João Guimarães Rosa, SONHAÇÃO: POR QUE FOI QUE EU CONHECI AQUELE MENINO? [1]

[...]. Não sei ler as instruções, mas tenho-as no sangue, a paixão do recorte, da seleção e da combinação. [...]. [...] subverto a regra, desfiguro o mundo: uma roupa feminina sobre um corpo masculino, e vice-versa. Compondo [...], acabo por aceitar a fatalidade [...]. Nada se cria. [...]. // [...]. Construo um mundo a minha imagem, um mundo onde me pertenço e é um mundo de papel. // [...]. Porque minha leitura não é monótona nem unificadora; ela faz explodir o texto, desmonta-o, dispersa-o. [...]. (COMPAGNON, 1996, p. 9-11, 13).

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Aí, pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore [...]. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. Ali estava, [...] e se ria para mim. Não se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele. [...]. Aquilo ia dizendo, e [...] // [...] eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido. [...]. Senti, modo meu de menino, que ele também se simpatizava a já comigo.

[...]. Disse que ia passear. [...]. Me perguntou se eu vinha. Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim. Ele me deu a mão, [...] // [...] e nós escolhemos [...]. Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado. [...]. Eu não sabia nadar. [...].

[...]. Foi o menino quem me mostrou. [...]. Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? [...]. Ele, o menino, era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. [...]. Eu queria que ele gostasse de mim.

[...].

[...]. Eu tinha o medo imediato. E tanta claridade do dia. [...]. Alto rio, fechei os olhos. [...]. Quieto, composto, confronte, o menino me via. – “Carece de ter coragem...” – ele me disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Dói de responder: – “Eu não sei nadar...” O menino sorriu bonito. Afiançou: – “Eu também não sei.” Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma luz. – “Que é que a gente sente, quando se tem medo?” – ele indagou, mas não estava remoqueando; não pude ter raiva. – “Você nunca teve medo?” – foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: – “Costumo não...” – e, passado o tempo dum meu suspiro: – “Meu pai disse que não se deve de ter...” Ao que meio pasmei. Ainda ele terminou: – “... Meu pai é o homem mais valente deste mundo.” Aí o bambalango das águas, a avançação enorme roda-a-roda – o que até hoje, minha vida, avistei, de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia. [...]. E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele, no profundo, desse a minhas carnes alguma coisa. Era uma mão branca, com os dedos dela delicados. – “Você também é animoso...” – me disse. Amanheci minha aurora. [...].

[...]. Aonde o menino queria ir? [...].

[...].

[...].– “Você é valente, sempre?” – em hora eu perguntei. [...]. Dando fim, sem me encarar, declarou assim: – “Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente...” E eu não tinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe contei eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.

[...].

[...]. E o senhor me desculpe, de estar retrasando em tantas minudências. Mas até hoje eu represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é saudade.

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[1] A citação de uma de minhas histórias por meio de algumas das citações de “Grande Sertão: Veredas”.

Referências:

COMPAGNON, Antoine. (1979). O trabalho da citação. Tradução: Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1996.

ROSA, João Guimarães. (1938). Grande sertão: veredas. 22. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.