[...]. Não sei ler as instruções, mas tenho-as no sangue, a paixão do recorte, da seleção e da combinação. [...]. [...] subverto a regra, desfiguro o mundo: uma roupa feminina sobre um corpo masculino, e vice-versa. Compondo [...], acabo por aceitar a fatalidade [...]. Nada se cria. [...]. // [...]. Construo um mundo a minha imagem, um mundo onde me pertenço e é um mundo de papel. // [...]. Porque minha leitura não é monótona nem unificadora; ela faz explodir o texto, desmonta-o, dispersa-o. [...]. (COMPAGNON, 1996, p. 9-11, 13).
******
Aí, pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore [...]. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. Ali estava, [...] e se ria para mim. Não se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele. [...]. Aquilo ia dizendo, e [...] // [...] eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido. [...]. Senti, modo meu de menino, que ele também se simpatizava a já comigo.
[...]. Disse que ia passear. [...]. Me perguntou se eu vinha. Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim. Ele me deu a mão, [...] // [...] e nós escolhemos [...]. Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado. [...]. Eu não sabia nadar. [...].
[...]. Foi o menino quem me mostrou. [...]. Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? [...]. Ele, o menino, era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. [...]. Eu queria que ele gostasse de mim.
[...].
[...]. Eu tinha o medo imediato. E tanta claridade do dia. [...]. Alto rio, fechei os olhos. [...]. Quieto, composto, confronte, o menino me via. – “Carece de ter coragem...” – ele me disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Dói de responder: – “Eu não sei nadar...” O menino sorriu bonito. Afiançou: – “Eu também não sei.” Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma luz. – “Que é que a gente sente, quando se tem medo?” – ele indagou, mas não estava remoqueando; não pude ter raiva. – “Você nunca teve medo?” – foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: – “Costumo não...” – e, passado o tempo dum meu suspiro: – “Meu pai disse que não se deve de ter...” Ao que meio pasmei. Ainda ele terminou: – “... Meu pai é o homem mais valente deste mundo.” Aí o bambalango das águas, a avançação enorme roda-a-roda – o que até hoje, minha vida, avistei, de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia. [...]. E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele, no profundo, desse a minhas carnes alguma coisa. Era uma mão branca, com os dedos dela delicados. – “Você também é animoso...” – me disse. Amanheci minha aurora. [...].
[...]. Aonde o menino queria ir? [...].
[...].
[...].– “Você é valente, sempre?” – em hora eu perguntei. [...]. Dando fim, sem me encarar, declarou assim: – “Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente...” E eu não tinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe contei eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.
[...].
[...]. E o senhor me desculpe, de estar retrasando em tantas minudências. Mas até hoje eu represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é saudade.
______
[1] A citação de uma de minhas histórias por meio de algumas das citações de “Grande Sertão: Veredas”.
Referências:
COMPAGNON, Antoine. (1979). O trabalho da citação. Tradução: Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1996.
ROSA, João Guimarães. (1938). Grande sertão: veredas. 22. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.