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sexta-feira, 21 de junho de 2019

Ariana Suassuna, em sua Aula Espetáculo de 30/04/2011

Dentre os temas discutidos por Ariana Suassuna em sua Aula Espetáculo de 30/04/2011, proferida no teatro do SESC Vila Mariana (São Paulo, SP), destaco:
  • O papel do professor e, por extensão de sentido, do escritor, no favorecimento, entre aqueles que constituem o seu público-alvo, da compreensão do ato de ver em dois movimentos, claramente distintos: o de avistar e o de enxergar. Desde é claro que cada um desses profissionais explore o caráter didático que as suas ações naturalmente admitem e/ou suportam, quando relacionadas à arte/literatura (popular e erudita), sob o compromisso de, por exemplo, auxiliar o brasileiro na valorização de sua riqueza cultural;
  • A lógica da poesia (superior à própria lógica) — não atinente à comunicação de um fato apenas, tampouco à de um fato irrelevante. Em sua predileção, inclusive, Suassuna registra a “poesia meio obscura, sonora e musical”, tendência expressa nesses versos de Federico García Lorca, no poema “Romance sonâmbulo”: “Verde que te quero verde. / Verde vento. Verdes ramos. / O barco sobre o mar / e o cavalo na montanha.”. Segundo o nosso dramaturgo, “Eu não sei o que quer dizer isso. Mas que é bonito, é”;
  • A similaridade entre Camões, sua lírica, e os poetas populares brasileiros, ou cantadores, suas cantigas — quanto à composição poética baseada na exploração de um mote (motivo) em glosa (variações). Para Suassuna, “o espanto poder do improviso dos (en) cantadores [nordestinos]” — dentre os quais, Dimas Batista, Heleno Belo e Antônio Marinho — não prescindi de “beleza lírica”, também expressa na utilização arguta de sextilhas e décimas (técnica / arte de versificação). A décima, por sua vez, é reconhecida pelo poeta em um trecho da peça teatral “A vida é sonho”, escrita pelo espanhol Calderón de la Barca no século XVII — especificamente, em um fragmento da fala do personagem Segismundo, reproduzida abaixo conforme tradução de Manuel Gusmão para a uma editora lisboeta em 1973 e, no Brasil, de Renata Pallottini (para a editora Scritta em 1992 e para a editora Hedra em 2007 e 2010):

CENA XIX
SEGISMUNDO
SEGISMUNDO
Verdade é, pois reprimamos
esta fera condição,
esta fúria e ambição,
para um dia que sonhemos.
Aprendamos, pois vivemos
em mundo tão singular,
que o viver é só sonhar;
e ensina-me a vida mãe
que na sua vida o homem
sonha o que é ´te acordar.
     Sonha o rei que é rei, e segue
com este engano mandando,
ordenando e governando;
e esse aplauso, que recebe
fingido, no vento escreve,
e em cinzas a dura morte
o torna, ó triste sorte!
Mas há quem queira reinar
Vendo que há-de despertar
no triste sonho da morte?
     Sonha o rico sua riqueza,
que mais zelos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e pobreza;
sonha o que adquire grandeza,
sonha o que luta e pretende,
sonha o que agrava e ofende,
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
e porém ninguém o entende.
     Eu sonho que estou aqui
destes ferros carregado,
e sonhei que noutro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção,
e o maior bem pouco é;
pois que a vida sonho é,
e os sonhos, sonhos são.
DE LA BARCA, Pedro Calderón. A vida é sonho. Tradução: Manuel Gusmão. Lisboa: Editorial Estampa; Empresa de Publicidade Seara Nova, 1973 [1635]. p. 130-131.

SEGISMUNDO (só) — É certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois pode ser que sonhemos;
e o faremos, pois estamos
em mundo tão singular
que o viver só é sonhar
e a vida ao fim nos imponha
que o homem que vive, sonha
o que é, até despertar.
Sonha o rei que é rei, e segue
com esse engano mandando,
resolvendo e governando.
E os aplausos que recebe,
vazios, no vento escreve;
e em cinzas a sua sorte
a morte talha de um corte.
E há quem queira reinar
vendo que há de despertar
no negro sonho da morte?
Sonha o rico sua riqueza
que trabalhos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e pobreza;
sonha o que o triunfo preza,
sonha o que luta e pretende,
sonha o que agrava e ofende
e, no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
no entanto ninguém entende.
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que noutro estado
mais lisongeiro [sic] me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho,
e os sonhos, sonhos são.
DE LA BARCA, Pedro Calderón. A vida é sonho. Tradução: Renata Pallottini. São Paulo: Hedra, 2010 [2007]. p. 74-75.

  • O cômico, o risível, como resultado de uma mecanização — a que o ser humano se permite — do/no próprio espírito/linguagem, em substituição à inventividade, graciosidade, da vida; na perspectiva de Bergson (— Henri), filósofo francês do século XX. No Brasil, por exemplo, a editora Edipro tem publicada, desde 2018 e sob tradução de Maria Adriana Camargo Cappello, de Bergson, a obra “O riso: ensaio sobre o significado do cômico”, e a apresenta por meio desta sinopse:
“Sinopse: O Riso reúne três artigos escritos pelo filósofo francês Henri Bergson em 1899 para a Revue de Paris, reunidos em livro no ano seguinte. Nestes três textos, o autor busca elucidar o significado do cômico e o que está por trás do riso como fenômeno social. As formas desajeitadas, os desvios de padrão e o feio são alguns dos motivadores do riso. Decorre daí a hipótese de Bergson de que o cômico depende de certa insensibilidade humana, uma exigência de que o outro se encaixe em padrões sociais. O pensamento original e incisivo de Bergson, neste e em outros ensaios, o tornou um dos mais influentes filósofos modernos, com ideias que impactam a intelectualidade até hoje.”
  • Sua casa (— a casa de Ariano Suassuna) enquanto expressão do mundo (sua riqueza cultural) e, por isso, espaço de resistência à arte massificada / falsificada; além da própria estrada que decidira percorrer a serviço do Governo do Estado de Pernambuco, na difusão da cultura nacional, especialmente com a realização do projeto circense Onça Malhada;
  • O favorecimento da ampliação do repertório artístico-cultural do brasileiro como estratégia para o incremento necessário de suas predileções estéticas:
 “[...] meu amigo Capiba [1904-1997], um grande compositor, [...] ficava indignado quando diziam que cachorro gosta de osso. Ele dizia: ‘Só dão osso ao cachorro, [...] ele come com avidez, aí dizem [que] ele é louco por osso; ele é louco por comida, como todo mundo [...]. Bote um filé e bote um osso pra ver qual é o que o cachorro escolhe’. Acontece que não estão dando oportunidade ao povo brasileiro, principalmente aos jovens, de entrar em contato com o filé. Só dão osso a eles. 
  • Elogio da unidade do povo brasileiro na diversidade, além de sua alegria como caractere distintivo em relação a outras nacionalidades. Suassuna ainda fala da brasilidade das mentiras sociais e da (auto) zombaria. Os causos contados a partir de 1h10min40 valem muito a pena, especialmente o de seu amigo que optou por morar na Suíça e desistiu logo após (1h13min / 1h16min59).

domingo, 16 de junho de 2019

Por que amar, em duas lições

Antônio Maria me ganhou com uma de suas crônicas em que o amor, não sendo dimensionado, assumia para mim o seu espaço na vida do homem:
No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga [...] ... tudo é menor. O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.
MARIA, Antônio. Café com leite [fragmento]. In: ______. Crônicas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 59-60.
Já faz alguns anos — eu sei. De lá pra cá, um sol já nasceu e se pôs. E esta aqui me parece ser a sua segunda lição sobre por que acordar, abrir a porta e sair: 
[...]. Amor, a gente espera, como o pescador espera o seu peixe, ou o devoto espera o seu milagre: em silêncio, sem se impacientar com a demora. E, amor, a gente não conta pelo jornal a não ser quando o sentimento trai a frase, juntando palavras que deveriam estar sempre separadas.
MARIA, Antônio. A noite é uma lembrança [fragmento]. In: ______. Crônicas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 31-33.

domingo, 2 de junho de 2019

"Para que serve a filosofia? Algumas respostas antigas" (ZINGANO, 2019)

Marco Antonio de Avila Zingano,
Professor de filosofia antiga na USP,
em 30/05/2019, no blog Ciência & Matemática

Esta insistente questão – mas, afinal, para que serve a filosofia? –, que tanto fazemos hoje, foi também insistentemente feita na Antiguidade e há boas razões para se crer que continuará a ser feita com a mesma insistência no futuro. Em um diálogo memorável, o próprio Platão a formulou na voz dos que são refratários e mesmo hostis à filosofia. Trata-se do diálogo intitulado Górgias, estruturado em três partes em função das personagens com as quais Sócrates dialoga: Górgias primeiro, o famoso sofista grego; Polo, em sequência; por fim Cálicles, com quem Sócrates tem uma difícil conversa em torno de temas como justiça, poder e hedonismo. (O Górgias foi recentemente traduzido de modo admirável para o português por Daniel Lopes.) É nesta terceira parte que Platão faz com que Cálicles qualifique a filosofia como uma ocupação para adolescentes, cuja inutilidade para a vida real os homens maduros rapidamente descobrem e por isso mesmo a abandonam definitivamente em proveito de outros ofícios, os que trazem benefícios a si próprios e à comunidade.

Platão relata assim, na voz de Cálicles, o bordão que haverá de ser repetido ao longo de séculos e séculos pelos mais diversos adversários da filosofia: ela não serve para nada, é inútil, mal se presta a jogos pueris, que as pessoas maduras hão de abandonar sem pestanejar. A resposta de Platão a esta atitude hostil é complexa; uma parte importante de sua resposta consiste no contraste que estabelece entre supostos sábios, mas de fato embusteiros, os que ele chama de sofistas, e o verdadeiro filósofo, aquele que se dedica com todas as suas forças à descoberta da verdade – não só de parte da verdade, a que pode lhe aprazer, mas de toda a verdade, a verdade inteira, ainda que lhe seja desfavorável. Deixemos de lado a questão de saber se Platão não está ele próprio enaltecendo a verdade que lhe apraz e sendo, do ponto de vista histórico, injusto com os sofistas; de certo modo, a insistência com que se refere a eles, o fato mesmo de nos ter reportado com clareza muitas de suas doutrinas revela que sua relação com os sofistas é igualmente complexa, marcada por rejeições e apropriações. O que nos interessa ressaltar aqui é que, por meio desta estratégia (entre outras), Platão quer dar à filosofia a cidadania que tantos lhe recusam. Suas razões não são somente teóricas, mas também pessoais: Atenas condenou à morte o filósofo Sócrates, o mais sábio e mais justo dentre os homens, segundo Platão. A condenação de Sócrates emerge aqui e ali, em seus diálogos, como a nódoa máxima, a mácula por excelência, aquilo que é estranho a todo pensamento. Neste sentido, convém lembrar que, nesta terceira parte do Górgias, quando Sócrates enfrenta Cálicles, Platão aproveita a ocasião para refletir sobre o que acontece quando um interlocutor não se deixa convencer, quando ele não demonstra interesse em seguir o fio das razões. É o que faz Cálicles, que se cansa do que considera ser a inútil verborragia da parte de Sócrates, que sempre volta a fazer questões e nunca se dá por satisfeito com as respostas. Cálicles simplesmente dá as costas a Sócrates e abandona o diálogo: não está mais interessado no que Sócrates diz e sobre o que argumenta. Aqui Platão toca no ponto frágil do diálogo grego antigo. É crença grega que, se o interlocutor prestar atenção ao que é dito, ele terminará por se convencer, por fazer suas as boas razões que lhe são apresentadas. Ocorre, contudo, que nada garante que o interlocutor tenha a disposição de escutar; se o interlocutor não quiser escutar, o filósofo fica indefeso, desprovido dos seus meios de lutar. A filosofia tem seus próprios defeitos, seus demônios internos, suas idas e voltas, mas seus pés de barro estão no fato que supõe que o outro queira escutar e seguir suas razões – mas por que diabos Cálicles procederia deste modo, Cálicles que quer antes usufruir de sua posição social avantajada, satisfazer seu hedonismo e dar vazão à sua busca de poder? Platão o reconhece claramente: para quem nada quer escutar, razão alguma há de o dissuadir.

Aristóteles também se preocupou com a atitude hostil da Cidade com a filosofia. Em um livro de juventude, hoje perdido, mas que pode ser recuperado em parte pelas citações que dele fez Jâmblico, cerca de seis séculos mais tarde, em um livro de mesmo título (Protréptico), Aristóteles argumentou assim: para saber se devemos filosofar ou não, devemos filosofar; portanto, devemos filosofar. Há certamente uma pitada de ironia aqui: ainda que a conclusão seja que não devemos filosofar, devemos filosofar para chegar a tal conclusão... Mais tarde, Aristóteles fará sua exortação à filosofia em outros termos. Na frase com que inicia seu célebre texto que ficou conhecido como Metafísica, Aristóteles escreve que “todos os homens desejam por natureza conhecer”; ora, a figura consumada do conhecedor é justamente o sábio que denominamos de filósofo. A filosofia inscreve-se assim na Cidade porque o homem que a habita tem um pendor natural pelo conhecimento e a forma por excelência de conhecimento é a filosofia. Pode ser que Aristóteles tenha razão em seu argumento: talvez os homens tenham todos um pendor natural pelo conhecimento e, dentre os diferentes tipos de conhecimento, a forma mais elevada seja a filosofia. Contudo, Aristóteles parece supor aquilo que Platão justamente pusera em dúvida: será mesmo que todos os homens desejam conhecer ou bem há alguns – eventualmente muitos – que não estão interessados em desenvolver o conhecimento em suas exigências argumentativas, assim que se sentem satisfeitos com suas crenças e suas situações de vida? Por que buscariam conhecimento, sob o risco de alterar ou mesmo perder o estado de que gozam atualmente? Menos ainda o buscariam na sua forma mais exigente e robusta, a filosofia!

A filosofia conheceu diferentes formas históricas. Do mundo grego à época contemporânea, a filosofia ocupou diferentes papeis, adotou diversas linguagens, realizou variadas funções; ela não está isenta de historicidade, muito pelo contrário. Porém, em todos os seus avatares – e os há, em boa monta –, a filosofia está sempre envolta com a tarefa não somente de conhecer, mas de conhecer o que é o conhecimento; ela está sempre às voltas com a questão não somente de falar diretamente sobre o mundo, mas de discorrer sobre como falamos sobre o mundo. Ela está intrinsecamente ligada a um recuo, a tomar distância das coisas e se perguntar sobre que relação têm as pessoas com as coisas quando lidam diretamente com elas. Sua aparência de inutilidade lhe cola à pele inevitavelmente, pois se afasta deliberadamente de um contato imediato com o mundo para justamente poder contemplar, tanto quanto possível, mesmo que não possa saltar sobre a sua própria sombra, a figura de um Mundo que a nós se oferece de imediato e no qual estamos de pronto inseridos.

Pode passar como uma curiosidade, mas não pode ser puramente acidental que o mundo grego nos legou uma das mais potentes defesas do ato de filosofar. Diógenes Laércio, de quem pouco sabemos, mas que escreveu um livro repleto de informações sobre os primeiros filósofos, as Vitae Philosophorum, nos relata que Pitágoras, na época fundadora da filosofia, já longínqua para os próprios gregos, comparava a atitude do filósofo ao que ocorre em um festival, em um jogo olímpico ou, se você quiser, em uma final de campeonato: algumas pessoas estão lá para competir; outras, para assistir ao evento; outras ainda, para fazer negócios e vender os mais diferentes produtos. Todas estão, de um modo ou outro, atarefadas no mundo, imediatamente inseridas nas formas de vida. O filósofo é quem assiste a tudo isso, sem envolver-se diretamente com nenhuma destas ocupações. Há ainda lugar, nos dias de hoje, a esta posição fora de todo lugar? É o que pretende fazer o filósofo, a despeito das dificuldades que cercam esta sua atitude intelectual, na medida em que se quer situar em ruptura com aquilo mesmo em que está inserido. Ademais, continua ainda hoje a sofrer a hostilidade dos que, imersos nas tarefas da vida, reproduzem o velho embate entre Reflexão e Cidade. Porém, valeria a pena viver uma vida sem refletir sobre ela do modo mais radical? A resposta de Platão é muito clara, quando faz Sócrates dizer, na Apologia, que ho anexetastos bios ou biôtos anthrôpôi, a vida que não passa por um exame – no sentido radical de pôr à prova - não vale a pena para um homem.

Referência:

ZINGANO, Marco Antonio de Avila. Para que serve a filosofia? Algumas respostas antigas. Ciência & Matemática, Rio de Janeiro, 30 maio 2019. Disponível em: https://glo.bo/2XmFOe4. Acesso em: 02 jun. 2019.