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quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

De Carlos Drummond de Andrade, "Escrevo estas linhas"

Escrevo estas linhas em agosto de 1943, depois da batalha de Stalingrado e da queda de Mussolini. Meu livro vai para o linotipista. Não quis que se compusesse sem acrescentar-lhe algumas palavras, menos de explicação ou desculpa do que de exame da conduta literária diante da vida.
É um livro de prosa, assinado por quem preferiu quase sempre exprimir-se em poesia. Esse suposto poeta não desdenha a prosa, antes a respeita a ponto de furtar-se a cultivá-la. Seria inútil repisar o confronto das duas formas de expressão, para atribuir superioridade a uma delas. Mas a verdade é que se a poesia é a linguagem de certos instantes, e sem dúvida os mais densos e importantes da existência, a prosa é a linguagem de todos os instantes, e há uma necessidade humana de que não somente se faça boa prosa como também de que nela se incorpore o tempo, e com isto se salve esse último.
Não há muitos prosadores, entre nós, que tenham consciência do tempo, e saibam transformá-lo em matéria literária. Frequentemente a literatura se faz à margem do tempo ou contra ele - seja por incapacidade de apreensão, covardia ou cálculo. Daí o vazio e o desconforto do texto literário, como a insatisfação que ele desperta em cada vez mais descrentes leitores. E pouco importa que haja muitos leitores, uma vez que eles não amem o autor nem se confessem devedores de alguma coisa tirada ao livro. 
Este livro começa em 1932, quando Hitler era candidato (derrotado) a presidente da República e termina em 1943, com o mundo submetido a um processo de transformação pelo fogo. Os que tiveram a sorte de viver em tal período serão bem mesquinhos se se embriagarem com a vaidade do espectador de um drama exemplar ou com a do passageiro no transatlântico de luxo. Eles próprios terão de confessar-se transformados, mais sérios e esclarecidos, mais determinados quanto aos problemas fundamentais do indivíduo e da coletividade. Não lhes bastará fazer uso contínuo da palavra cultura ou da palavra justiça, mas antes devem contribuir com tudo o que tenham de bom para que essas palavras assumam o seu conteúdo verdadeiro ou, então, sejam varridas do dicionário. 
Declaro honestamente que falta a meu livro isso que para mim, neste domingo de agosto, é o mais precioso de tudo: falta-lhe o tempo, com suas definições. As páginas foram-se escrevendo mais para contar ou consolar o indivíduo das Minas Gerais, e dizem bem pouco das relações desse indivíduo com o formidável período histórico em que lhe é dado viver. Mesmo assim, não as desprezo. Dou-as como um depoimento negativo, indicando aos mais novos que devem formular depoimentos positivos, autênticos e até mesmo impiedosos, se for o caso. 
Já não tenho medo de escravizar-me à vida, e acho que uma sutileza que não resista à prova da convivência mais larga é apenas um vício. E digo aos rapazes: Rapazes, se querem que a literatura tenha algum préstimo no mundo de amanhã (o mundo melhor que, como todas as utopias, avança inexoravelmente), reformem o conceito de literatura. Já não é possível viver no clima das obras-primas fulgurantes e... podres, e legar ao futuro apenas esse saldo dos séculos. Reformem a própria capacidade de admirar e de imitar, inventem olhos novos ou novas maneiras de olhar, para merecerem o espetáculo novo de que estão participando. Se lhes disserem que nada disso é novo e que já houve guerras, e depois armistícios e depois outras guerras etc., etc., não levem a sério essa falsa experiência histórica, que impede qualquer melhoria da história. Se tudo foi dito, então o remédio é o suicídio sob qualquer de suas formas, inclusive a do beato e precário contentamento de existir na época do rádio e das roupas de vidro. Prefiro acreditar que nada foi feito nem escrito nem descoberto. Que estamos começando a nascer, e que os gênios nacionais e estrangeiros não foram ainda inventados. Porque antes negá-los todos do que viver esmagado por eles, e como pesam!, de todo o peso da aceitação e da facilidade. 
Não estou pois dentro deste livro de retalhos, e sim fora dele. Mas sinto que foi um caminho pelo qual cheguei a uma excelente cidade, de ruas largas e populosas. Ele abriu minhas gavetas secretas. Libertou-me de alguns fantasmas particulares. Agiu. Hoje não escreveria quase nada do que aí se contém, mas por isso mesmo a sensação de desprendimento e liberdade é maior. Vamos andando.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Escrevo estas linhas. In: ______. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 11-14.